Jonattan Rodriguez Castelli

As águas do Mundaú


Jonattan Rodriguez Castelli

CONHECI DANDARA QUANDO VISITEI PALMARES. Estava em Maceió, participando de um congresso de economia, e ao me deparar com um dia livre, pensei que era uma oportunidade a qual não se podia desperdiçar: visitaria a terra de Zumbi. No hotel onde me hospedara, disponibilizaram o contato de uma guia local, Marina, moradora de Palmares e historiadora. Quando liguei para ela, logo me explicou que preferia ser chamada pelo nome da companheira de Zumbi.
Dandara recebeu essa alcunha quando era uma menina e costumava participar de uma festividade anual, celebrada no vinte de novembro em Palmares. As pessoas se reúnem em uma praça, próxima à imponente estátua de Zumbi, carregando sua lança e escudo, formando uma procissão que se encerra no centro histórico de Palmares. Lá continuam a celebração da história de seus ancestrais e rezam a Oxum, Yansã, Nanã e outros orixás, celebrando a memória daqueles que lutaram até o fim pelo direito de viverem suas vidas como bem entendiam.
Entre rezas, o tocar dos tambores, oferendas, danças e histórias contadas, as crianças locais encenam a vida de Zumbi e Dandara. E dos seus cinco aos quinze anos, o papel de Dandara coube à minha guia, por esse motivo, todos a conhecem por esse nome.
Dandara usava uma camiseta com a imagem do centro histórico e uma bandana amarela. Indicou-nos o caminho que seguiríamos, em direção a réplicas das cabanas de palha e madeira do século XVII. Revelou-nos que o quilombo dos Palmares, ou Angola Janga (pequena Angola em quimbundo), era um local de refúgio e luta não só para os negros libertos da escravidão, assim como para indígenas e até brancos muito pobres, a quem a sociedade também tratava com brutalidade e escárnio.
Palmares resistiu por cem anos, até ser destruído pela horda de soldados, mercenários e bandeirantes de Bernardo Vieira. O famoso quilombo cobria uma vasta área, formado por um conjunto de mocambos estendidos pelo vale da Serra da Barriga. O parque histórico era o mocambo principal, o Cerro dos Macacos, abrigava as lideranças políticas e guerreiras de Palmares, ficando escondido pela mata nativa, em uma região alta e estratégica. Dele era possível observar todo vale, as distantes estradas de areia, os demais mocambos, e vigiar a tocaia inimiga.
Dandara nos mostrou o mirante que dava para o vale. Narrou a invasão e destruição do quilombo, destacando a coragem e habilidade militar da heroína com quem compartilhava o nome. Dandara, a rainha de Palmares, lutava empunhando seu Gubassá, gritando “Sarauê, Zumbi! Saruê, Palmares!”
— Zumbi caiu no campo de batalha, longe daqui. Dandara ficou para proteger o centro de Palmares, lutando com seus guerreiros. Ela viu cada um deles tombar, um a um, inclusive seu filho, Motumbo. Acuada, só havia duas opções, e ela nunca escolheria a escravidão — apontou para o mirante — Ela pulou da atalaia, acompanhada de muitos irmãos e irmãs, homens, mulheres, crianças. Seus corpos despencaram livres em direção ao Orum.
Quando Dandara encerrou sua narrativa, baixou a cabeça e orou em iorubá, depois um pai nosso em português. Enquanto a observava, sentia um misto de tristeza, raiva e, ao mesmo tempo, orgulho de conhecer aquela história. Nunca havia lido nada desse tipo nos livros da escola ou mesmo na bibliografia sobre a formação econômica do Brasil, referência ao longo do curso de economia, e utilizados até hoje nas minhas aulas na faculdade.
— Tenho uma surpresa pra vocês: um mocambo sobreviveu à destruição de Palmares e existe até hoje, minha família é de lá. Vamos visitá-lo.
Partimos para o quilombo, chamava-se Muquém. Dandara nos informou que Muquém em iorubá significa esconderijo. O mocambo ficava na região limítrofe de Palmares e recebeu esse nome pois era nele onde os escravizados fugidos se escondiam por semanas até encontrarem uma brecha e partirem às regiões interiores e mais protegidas do quilombo.
Na praça de Muquém éramos esperados por artesãos locais, com seus produtos expostos em pequenas mesas de madeira. Conversei com alguns deles e comprei bonecas de pano e estopa. Meninas negras com cabelos feitos de lã, um presente ideal para minha irmã, cujas bonecas da infância nunca se pareceram com ela. Visitamos as casas de alguns moradores e ouvimos suas histórias familiares. Em Muquém, a maior parte da população é aparentada, compartilham o mesmo sobrenome e o amor pela arte.
Entramos em uma das casas e, logo, Dona Irineia, a proprietária da residência, nos recebeu e nos acompanhou até sua oficina de trabalho. Mostrou suas esculturas, uma delas representava uma jaqueira frondosa, com pessoas e animais penduradas em seus galhos.
— Esta aqui é sua guia, Dandara, ainda menina.
Dandara se aproximou e contou a origem daquela obra de arte. Muquém é banhada pelo rio Mundaú. Suas águas sempre foram benfazejas ao povo do quilombo, porém em dois mil e dez, as chuvas encheram o rio, fazendo-o subir violentamente, arrastando tudo à sua frente. E quando as águas subiram, ela e os moradores do quilombo se abrigaram em jaqueiras, a árvore de Yansã.
Dandara ficou pendurada entre os galhos, junto a mais de vinte pessoas, abraçados uns aos outros, voltando a acreditar nos orixás e confiando no próximo, pois se Jeová trazia o dilúvio, Yansã lhes era abrigo. Rezavam à orixá, pedindo um pouco de sua coragem para enfrentar a enchente. Se alimentaram da jaca, mas a sede lhes castigava. A ironia das enchentes é se estar cercado de água, mas não ter o que beber. Até que Nanã intercedeu e enviou uma chuva delicada que lhes refrescava os corpos e permitia-se ser bebida.
Durante dias Dandara se manteve firme, em dúvida se seus pais e irmã tiveram a mesma sorte que ela. Com o tempo, as águas baixaram e puderam descer ao chão. Dandara reencontrou a família, mas não seu lar. Os casebres de madeira haviam sido destruídos e os moradores de Muquém tiveram que habitar uma área mais distante do rio, onde hoje é o quilombo renascido. Entretanto, da enchente brotou na região a arte de dar vida ao barro. E com o barro os moradores de Muquém ceramicaram as próprias vidas.

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Jonattan Rodriguez Castelli

E-mail: castellijonattan@gmail.com

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