Jonattan Rodriguez Castelli

Tau Herculídeas


Jonattan Rodriguez Castelli

CÉZAR NÃO CONSEGUIA DORMIR. Deitado na cama, mexia- se de um lado para o outro, esperando o momento de pôr o seu plano em prática. Olhava para o teto do quarto e imaginava cruzar, entre as estrelas e planetas de plástico brilhando no escuro, os meteoros da Tau Herculídeas. Antônio, seu irmão mais velho, arranjara tudo, usariam a luneta da torre de observação em que ele trabalhava. Ficava no ponto mais alto da região e, de lá, era possível ver toda a grande Cruzeiro e vigiar quem entrava e saía da vila.
Nos últimos dias, o clima estava tenso, pois os Manos tinham jurado cobrar uma dívida dos V7 e, por isso, à noite ninguém saía de casa. Mas Antônio investigara, os Manos estavam envolvidos em outra operação naquela noite. “Uma coincidência dessas é coisa de Deus”, disse-lhe Antônio antes de subir à torre.
A chuva de meteoros rasgaria os céus às três da madrugada. Cézar passara o dia rezando para que o céu estivesse limpo, para não atrapalhar a observação astronômica. Nem prestara atenção à aula de Ciências, sua matéria favorita da terceira série, sonhando acordado com o espetáculo da natureza. Mirava o sistema solar de isopor, que sua turma construíra no bimestre anterior e enfeitava a sala de aula, e se imaginava laçando um meteoro e viajando pela Via Láctea.
O problema era sair na surdina. A dona Naná, a avó que os criara, dormia na sala. Mas tinha o sono leve desde a mocidade de Margarete, sua filha, quando a esperava voltar do trabalho e, a qualquer barulho de moto ou tiro, acordava sobressaltada, pensando que o pior ocorrera. Seu sono piorou ainda mais quando seus medos se concretizaram e Margarete não retornou.
Às duas e meia da madrugada, Cézar se esgueirou pela casa, pé ante pé, tomando todo cuidado para não esbarrar em nada. Chegou até a porta. A parte mais difícil: abri-la sem fazer ruído. Fez o movimento, sem tirar os olhos de dona Naná, que roncava no sofá. Uma gota de suor escorria pelo rosto do menino, suas mãos tremiam. Abriu a porta e saiu.
Afastou-se da casa, pisando leve, para o som do cascalho não acordar dona Naná. Quando alcançou a rua de paralelepípedo, disparou em direção à torre. Alguns cães latiam, e luzes de casas se acenderam. Cézar temia ser confundido com um ladrão, mas seguiu o trajeto, com as pernas bambas.
Ao chegar à torre, avistou um dos soldados, com um fuzil a tiracolo.
“Alto lá!”, Cézar parou.
— Onde pensa que tá indo, moleque?
— Sou irmão do Antônio.
—Tô sabendo de nada. Pra mim tu tem é cara de Mano.
Cézar olhou para o rosto do soldado. Ele o encarava, enquanto apertava firme o fuzil. O coração do menino acelerou. Fechou os pequenos punhos e sentiu suas pernas quererem sair correndo dali. Mas se manteve firme, sem desviar o olhar.
— Tô te zoando, moleque. Sobe lá, má rápidão.
Cézar subiu correndo as escadas externas do sobrado – pelas janelas podia ver outros soldados, mesas com morrinhos de pó branco, balanças e saquinhos plásticos. “Tu demorô, caraio”, disse Antônio. Também carregava um fuzil, mas esse estava jogado às suas costas. Ele estava parado perto do parapeito da laje e, em cima de um banquinho, a luneta, apontando para o céu. Cézar foi até ela e, só então, viu mais três soldados, cada um em um canto da laje, segurando metralhadoras. Eles olhavam para a rua, com o cenho fechado, apertando os lábios. Um deles batia o pé no chão, e outro revezava uma coçada no topo da sua cabeça e uma passada de mão por sua nuca.
O menino aproximou seu rosto da luneta. Encostou o olho direito junto à lente ocular e viu as estrelas se ampliando. Mirou a luneta para baixo e pôde enxergar até a entrada da vila, uma caminhonete subia. Sentiu um peteleco na sua orelha esquerda. “Te liga, piá”, disse Antônio. Cézar mirou o céu, sendo riscado por milhares de faixas de luz. Seu irmão também admirava a Tau Herculídeas, e seus companheiros de vigia desviaram o olhar para cima.
— Cabou. Melhor teu irmão vazar.
Antônio assentiu com a cabeça. Mas Cézar ainda observava o céu, enquanto arreganhava os dentes em um sorriso. Os soldados se mexiam, apertando o cabo de suas armas. Antônio se aproximou do caçula e tocou de leve sua cabeça, “Vamo lá, rala peito”, disse Antônio.
Cézar se afastou da luneta e saiu do sobrado, descendo a rua em direção à casa, intercalando passos e pequenos saltos. Antônio ainda pensava na imagem do irmão tendo seu momento de astrônomo, quando a caminhonete subiu a rua acelerando. Na parte de trás dela, cinco homens com fuzis, eram os Manos. Cézar sequer teve tempo de ver as luzes dos faróis crescendo em sua direção, como uma supernova irradiando o universo com sua beleza abrupta e incandescente.

(Conto publicado em "Olhos Lilases", editora Metamorfose, 2023)

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Jonattan Rodriguez Castelli

E-mail: castellijonattan@gmail.com

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